Sustentabilidade no prato? A complexidade por trás da comida consciente

Em uma manhã qualquer, enquanto escolhemos entre o pão integral da padaria local ou a granolinha sem açúcar embalada em plástico biodegradável, é fácil se perder entre as promessas de bem-estar. A cultura da alimentação saudável e da sustentabilidade no prato está cada vez mais presente no nosso vocabulário e nas redes sociais, mas quando olhamos com mais atenção, percebemos que o discurso nem sempre combina com a prática – e que o mundo dos alimentos está, de fato, bem confuso.

A busca pelo “comer melhor” se tornou uma exigência quase moral. Rótulos como plant-based, orgânico, natural, carbono neutro – entre outros – surgem como soluções prontas para problemas complexos. Mas o que essas palavras realmente significam em um cenário global em que um terço de todos os alimentos produzidos ainda é desperdiçado, segundo a Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO), enquanto mais de 735 milhões de pessoas enfrentam a fome?

Nos últimos anos, a indústria alimentícia passou por uma transformação impulsionada tanto pela demanda do consumidor quanto pelas pressões regulatórias e ambientais. Países da União Europeia aprovaram legislações para limitar o desmatamento associado a cadeias de fornecimento de soja, cacau e carne bovina. A China incorporou metas de segurança alimentar e redução de emissões nos seus planos quinquenais. No entanto, em muitos países – inclusive no Brasil e nos Estados Unidos – interesses corporativos continuam tendo enorme influência sobre políticas públicas que deveriam equilibrar nutrição, justiça social e sustentabilidade ambiental.

Por trás de campanhas coloridas promovendo alimentos ultraprocessados com selos “eco-friendly”, estão cadeias de produção intensivas em emissões de gases de efeito estufa. A produção global de alimentos é responsável por cerca de a um terço das emissões globais de gases de efeito estufa, segundo o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC). Só a pecuária contribui com cerca de 14,5% dessas emissões. Isso sem contar os impactos em biodiversidade, uso da terra e poluição das águas. E, no entanto, nunca se falou tanto em bem-estar. Influenciadores do TikTok e do Instagram promovem dietas limpas, jejuns intermitentes, receitas de smoothies verdes e cápsulas mágicas. Há uma pressão silenciosa para sermos saudáveis, sustentáveis e felizes — tudo ao mesmo tempo. Mas o acesso a essa “cultura do bem-estar” ainda é restrito. Alimentos orgânicos, por exemplo, continuam com preços até 50% mais altos que os convencionais em muitos países, tornando-os inacessíveis para grande parte da população.

O problema não é a busca por saúde ou consciência ambiental. Ao contrário: esses movimentos são sinais importantes de transformação cultural. Mas é preciso cuidado para não transformar a sustentabilidade em mais um produto de luxo. O risco é que, ao invés de combater as desigualdades do sistema alimentar, reforcemos barreiras entre quem pode pagar pelo “bem-estar” e quem continua vivendo à margem, entre insegurança alimentar e más condições de saúde. Existe uma contradição central que precisa ser enfrentada: a cultura global de bem-estar ainda é amplamente baseada em um modelo de consumo excludente, centrado no indivíduo e desconectado da complexidade dos sistemas ecológicos e sociais. A boa notícia é que há alternativas sendo construídas. Cidades como Amsterdã, por exemplo, estão adotando a ideia da “economia da rosquinha”, que prioriza o bem-estar humano dentro dos limites planetários, promovendo hortas urbanas e políticas públicas de alimentação saudável para todos. Redes de agroecologia e agricultura regenerativa se espalham por territórios marginalizados na América Latina e na África, empoderando comunidades locais e integrando saberes ancestrais à inovação contemporânea.

A confusão, portanto, não é um obstáculo intransponível — ela é um reflexo do momento de transição em que vivemos. Precisamos reconhecer que o ato de comer está carregado de decisões éticas, políticas e ambientais. Não se trata de culpa, mas de consciência. A sustentabilidade alimentar verdadeira não será feita apenas por escolhas individuais nos corredores do supermercado, mas por políticas públicas inclusivas, por educação crítica e por uma cultura do bem-estar que seja, de fato, coletiva. É hora de irmos além do marketing verde e das promessas embaladas. A comida tem o poder de transformar o mundo — mas só se conseguirmos olhar para ela como algo mais do que um produto. Ela é território, memória, saúde, natureza, trabalho e, acima de tudo, direito.

Fontes

  • IPCC Sixth Assessment Report (2023)
  • FAO: The State of Food Security and Nutrition in the World (2024)
  • WRI: Creating a Sustainable Food Future (2023)
  • IEA: Agriculture and Emissions Overview (2024)
  • OECD-FAO Agricultural Outlook (2024–2033)

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